Consórcio das Águas, que une indústria, governo e produtores, estimula regeneração da vegetação para recuperar as nascentes dos rios
Por Mariana Grilli, de Patrocínio e Monte Carmelo (MG), para Um Só Planeta
03/10/2024
Link da matéria aqui: https://umsoplaneta.globo.com/clima/noticia/2024/10/03/no-clima-dos-biomas-alianca-inovadora-fortalece-cafeicultura-no-cerrado-mineiro-e-resiliencia-da-natureza.ghtml
Marcelo Urtado — Foto: Danilo Lelis/Módulo Filmes
Múltiplas facetas compõem o Cerrado brasileiro. Segundo maior bioma do país, estende-se por uma vasta área, abrangendo partes de 11 estados. Por isso, viajar pelo Cerrado é se deparar com paisagens e vegetações diversas, resultado de diferentes condições climáticas e geológicas. Há regiões onde se predomina a agricultura rotacional, como é o caso da soja e do milho, enquanto outras concentram sítios produtores frutas, verduras e legumes.
Há altitudes especiais para a perenidade dos pés de café e horizontes de chapada onde se cultivam outros grãos. Ao cobrir cerca de 25% de todo o território do país, o Cerrado reserva histórias antagônicas, das áreas ameaçadas pelo agravamento de seca à esperança de quem busca recuperar as nascentes dos rios.
Complexo por natureza, o bioma apresenta fisionomias que englobam formações florestais, savânicas e campestres. O chamado Cerrado Campo Limpo se caracteriza por gramíneas, com poucas árvores ou arbustos. Já o Cerradão tem uma fitofisionomia distinguida por floresta aberta, com árvores mais altas e densas do que no cerrado típico. Estas são somente algumas das formações que compõe a biodiversidade deste bioma tão brasileiro.
A vegetação do Cerrado apresenta adaptações para sobreviver em um ambiente com longos períodos de estiagem. As raízes profundas, as cascas grossas e as folhas típicas são algumas das características que permitem às plantas resistirem às condições adversas. Apesar disso, perda de vegetação primária e redução das florestas são fatores que têm contribuído para o agravamento da seca e das queimadas.
“No Cerrado, é comum queimar mais durante esta época [junho] por causa da estiagem, porém a área queimada no primeiro semestre no bioma foi a maior dos últimos seis anos monitorados”, explica Vera Arruda, pesquisadora no IPAM e coordenadora técnica do Monitor do Fogo.
Este foi o segundo bioma mais atingido pelas chamas, com 947 mil hectares queimados nos seis primeiros meses de 2024 – o que representa 48% (307 mil hectares) a mais, quando comparado ao mesmo período de 2023. A maior parte do fogo ocorreu em áreas de vegetação natural (72%), ainda de acordo com o Monitor do Fogo.
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O quadro se agrava diante de um mundo que ferve sob a emergência climática. Segundo estudo recente de pesquisadores da USP publicado na revista Nature, o Cerrado brasileiro atravessa sua seca mais severa em pelo menos 700 anos. A região experimentou um aumento de 1º C acima da média global, o que resulta e disturbios hidrológicos, como a evaporação de parte da chuva antes de alcançar o solo, afetando o nível dos rios.
Diante do cenário, que ameaça a produção de alimentos no Cerrado, surge a necessidade de preservar nascentes e lençóis freáticos, frente que instigou o trabalho do Consórcio Cerrado das Águas, um oásis de recuperação do recurso hídrico em um bioma com tantos desafios.
Berço da mudança
No meio desta realidade, encontra-se o município de Patrocínio, Minas Gerais. Um dos maiores polos produtores de café do Brasil, e consequentemente do mundo, tem se tornado palco de uma importante ação para resiliência climática. Quem entra em cena são os cafeicultores, mas a protagonista da história é a água, graças ao Consórcio Cerrado das Águas (CCA). “A iniciativa nasceu de um estudo do cientista Eduardo Assad, que apontou o café como uma das principais culturas afetadas pela mudança do clima. Daí, surgiu a ideia de uma plataforma pensada para a cadeia da cafeicultura, com incentivo da indústria aos produtores, para preservar o bem mais precioso: a água”, explica Fabiane Sebaio, secretária executiva do CCA.
O cafeicultor Nilvano Gonçalves Caixeta vive isso na prática diariamente, como gerente da Fazenda Grão de Ouro. Dentro de cerca de 270 hectares divididos entre café, eucalipto e áreas preservadas, a água ressurgiu após um trabalho de união. Ele conta que no cafezal é uma prática comum refazer as áreas produtivas, retirando os pés mais antigos de café para plantar novas mudas. Em uma visita do Consórcio à fazenda, a equipe técnica mapeou uma nascente que poderia ser recuperada muito próxima à área de plantio, o que favoreceria não apenas a produção dos grãos, mas o município inteiro.
Ali, na Grão de Ouro, no meio da mata que um dia foi cafezal, a regeneração da vegetação deu lugar à recuperação da nascente do Rio Dourado. Um fio de água corrente, límpido, entre árvores, folhas e uma vegetação densa, a menos de 100 metros do cafezal, é uma evidência da natureza em equilíbrio com a agricultura. A água que se vê encharcando o solo e seguindo fluxo abaixo é o que transborda do lençol freático, sinal de que a água está sendo armazenada pelo solo como se deve. “Aqui, era tudo café. Na hora de planejarmos o plantio das árvores, fizemos de uma forma que as elas acompanhassem a direção da cabeceira da nascente do rio. Virou o cantinho querido da fazenda”, conta Nilvano com orgulho.
Além de ser ‘o cantinho querido’, o benefício socioambiental daquela nascente tem desdobramento positivo para o coletivo. Afinal, o Rio Dourado abastece o município de Patrocínio, com quase 90.000 habitantes. Tudo parte dali, uma área de mata regenerada com pouco mais de 50 hectares. Para chegar até esta conquista, o Consórcio Cerrado das Águas fez uma série de visitas à propriedade, uma análise de risco, um plano de recuperação, e uma proposta de trabalho consistente em conjunto. “Tinha um risco de uma nascente secando, numa área que considerávamos desmatada, e eles aceitaram esse desafio de restaurar”, lembra Fabiane Sebaio.
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A partir daí, em janeiro de 2020, foram 244 mudas de árvore plantadas e um trabalho constante de manutenção. Ver a água ‘brotar’ do solo e se deparar com árvores como a Embaúba, que figura em lugares de fartura hídrica, é uma conquista – sobretudo, em períodos ampliados de seca e menores volumes de chuva. Além disso, a região entre os municípios de Patrocínio, Serra do Salitre e Coromandel é considerada uma área de conflito, ou seja, é muita gente para pouca água, entre as zonas urbana e rural. Isso pede ainda mais responsabilidade dos moradores da cidade e dos produtores rurais entre as bacias do córrego Feio, as bacias de Ribeirão Grande e o rio Santo Inácio.
Nova mentalidade
Cafeicultor Sebastião Francisco Sereia. — Foto: Danilo Lelis/Modulo Filmes
Usar o recurso hídrico de forma eficiente, consciente e cuidadosa é um ato coletivo em prol do planeta – e para o bem do nosso cafezinho. Em quase quatro anos, mais de 100 produtores ao redor das bacias do Cerrado Mineiro têm se engajado em mudar as atitudes deles quanto ao manejo da lavoura e áreas de reserva, a partir do trabalho do CCA. Até porque, é preciso pensar na recuperação e disponibilidade da água a nível de paisagem, isto é, não é possível trabalhar com apenas um produtor, mas pensar no ecossistema e na política da boa vizinhança.
Entre estes agricultores está Sebastião Francisco Sereia. Sua propriedade é pequena em relação aos vizinhos, mas mesmo assim ele percebeu que ela era importante na engrenagem da água no Cerrado. Ao todo, são 32 hectares de área, mas uma parcela de 20% deve ser dedicada à Área de Preservação Permanente, conforme manda a legislação. Por muitos anos, uma vegetação rasteira e muitos cipós eram características da APP de Sebastião. Até a chegada do Consórcio.
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Em 2021, uma geada fora do comum atingiu a pequena propriedade, um sinal claro da mudança de clima, em uma região que não costuma ser atingida de forma tão brusca por temperaturas muito baixas. No mesmo ano, a equipe técnica do CCA visitou o cafeicultor e viu que onde predominava capim era possível inserir vegetação nativa para uma convivência mais harmônica e benéfica ao ambiente.
“Você imagina se eu tivesse desmatado até lá dentro [perto das nascentes] e correndo enxurro para dentro dela? Com certeza, iria tampar as nascentes, então foi bom o Cerrado das Águas ter vindo para cá, acabou alertando, abrindo mais a cabeça da gente”, comenta Sebastião.
De gota em gota
Ainda no município de Patrocínio, quem tem autorização de uso d’água para irrigar a lavoura de café sabe a responsabilidade de usufrui-la sem desperdícios. Foi diante deste compromisso, que Ricardo dos Santos Bartholo instalou sensores de umidade no solo na Fazenda 5 Estrelas. “Com esse agravamento dos problemas hídricos, começaram a limitar o nosso consumo de água, então hoje a minha licença de tirar água do rio já é menos daquilo que eu preciso, por isso tenho que administrar com mais acurácia essa dosagem de água”, ele conta.
Bartholo explica que a irrigação que faz no cafezal é por gotejamento, ou seja, mangueiras são instaladas no solo e no pé de cada árvore do café sai água de gota em gota, somente na quantidade necessária. A umidade tem que estar equilibrada, afinal, se a planta fizer muito esforço para retirar água no subsolo terá que gastar mais energia e tende a produzir menos.
Em conjunto com o Consórcio Cerrado da Águas, sensores foram instalados nas linhas do café, para medir a umidade do solo exatamente onde a produção acontece – sem ser influenciada por microrregião ou números genéricos de regiões distantes. “Debaixo do pé do café, não tem lugar para recolher informação melhor do que esse. Se a planta estiver fazendo força para puxar água, é porque o solo está seco, e aí eu ligo a irrigação somente no momento e na quantidade necessários”, esclarece o produtor.
“A base do meu negócio de café chama-se água, é ela que vai fazer essa planta dar frutos. A planta de café não come, ela bebe uma solução nutritiva extraída do solo. Então para mim, como produtor, meu maior insumo é a água”, declara Bartholo.
Nesta construção de cuidados com o café, ele conta que um dia “se percebeu orgânico”. A consciência de cuidar melhor da água se estendeu a outras formas de encarar a cafeicultura, como a redução do uso de agrotóxico nas lavouras. Isto, inclusive, faz as companhias de café pagarem melhor pelo grão, além de facilitar a conquista de selos de sustentabilidade, na linha de um café carbono zero. Por vezes, a depender da época do ano, Bartholo ainda precisa, mas já teve safras de manejo totalmente orgânico, com soluções de proteção baseadas na natureza.
“Este trabalho do Consórcio consegue motivar a cadeia do café como um todo. Empresas de torra, que entregam o produto ao consumidor lá na ponta, aportam recursos para ajudar o produtor a fazer esse trabalho de melhoria contínua no processo de coleta de água, e isso contribui para o Cerrado mineiro inteiro”, diz.
Cuidar da natureza é o melhor investimento
Presidente do Consórcio Cerrado das Águas, o cafeicultor Marcelo Urtado dialoga com todos os atores da cafeicultura, porque consegue ter uma leitura clara entre as demandas do consumidor, as necessidades da indústria e os desafios da lida no campo. Na Fazenda Três Meninas, no município de Monte Carmelo (MG), uma área de solo empobrecido, e pouca capacidade de retenção de água, deu lugar à vegetação nativa, recuperação do banco de sementes do solo e melhora na presença de polinizadores. “A gente mantém o solo coberto, faz um manejo conservativo e tem mais água”, simplifica Marcelo. Até chegar neste estágio de recuperação do recurso hídrico, muito trabalho é feito, com o olhar atento sobre a paisagem.
A monocultura não diz respeito somente a vastos hectares de soja, mas se refere a todo tipo de plantio em que prevalece somente uma cultura. Logo, quem planta unicamente café também pratica a monocultura, o que empobrece a variedade de nutrientes no solo. Assim, o primeiro passo de Marcelo a favor da recuperação das águas é ter plantas de cobertura e árvores, de variadas espécies, para aumentar biodiversidade.
A escolha destas espécies não é uma receita de bolo, ele diz, mas deve ser feita a partir de uma agricultura de processos. Isso significa que é preciso estudar a paisagem, compreender a biologia do local e, como no caso do Cerrado, as fisionomias que compõem o ambiente. Por isso, um dos princípios do Consórcio é conhecer a vizinhança, as formas de produção, a legislação ambiental e fazer um planejamento de recuperação da vegetação de forma sistêmica e holística.
“É preciso ter um equilíbrio. Se for só mata, não temos comida. O ser humano faz parte do sistema, então ele tem que usá-lo, mas de forma a preservar. Assim, defendemos a agricultura de processo, não de produto. Seja o produto químico ou biológico, ele é um parafuso dentro do motor, não é o motor em si”, relata o cafeicultor.
Qualificar as áreas, portanto, exige entender se a vegetação está mais propensa a formações florestais, savânicas e campestres, quais as espécies têm aptidão para adaptação e a função delas para todo o ecossistema, incluindo a produção agropecuária. Entre as linhas do café, são colocadas plantas de cobertura do solo para que ele permaneça protegido. Entre cada pé de café, Marcelo Urtado tem iniciado o plantio de algumas árvores para sombreamento e nutrição. Aos poucos, o mosaico vai ganhando vida e cada organismo contribui para a recuperação do Cerrado mineiro.
“Quando falamos que a natureza é nossa sócia, não é poesia. É usar a natureza a favor, então é qualificar uma área para ter mais biodiversidade, e com isso teremos mais água. Essa forma de produzir te dá mais resiliência e condições para hoje e para o futuro”, defende o cafeicultor.
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